O que sobrou do nosso tempo? Tudo o que era fogo congelou-se? Ou, aconteceu o inverso, fazendo-me parecer que a chegada da primavera perversa transformou todo o gelo do inverno em água corrente e vadia, que apenas anseia chegar ao mar.
À noite, a canção dos Beatles nos dizia que o sol estava chegando e que o gelo derretido anunciava um novo tempo: tempo de sol e flores. Porém, as manhãs que vieram em seguida não trouxeram flor, perfume ou cor. De noite tudo parecia claro e lindo, mas a luz da manhã me ofereceu apenas agenda e gravata, e fui obrigado a guardar no bolso o calor que nos animara.
Todas as palavras ditas, sussurradas ou inauditas na madrugada se perderam, derreteram-se na memória com o efeito do sol que invadiu a janela. O que aconteceu quando abrimos a cortina para o mundo?
Memórias, palavras e caminhos são coisas estranhas. Podem conter armadilhas ou atalhos. Podem conter mistérios que permanecerão indecifráveis por milênios, como os hieróglifos das pirâmides.
Assim acontece nos caminhos do mar, por exemplo, como me contou o amigo Giba de Oliveira, quando lembramos dos versos de Fernado Pessoa e comentamos os famosos versos “navegar é preciso, viver não é preciso”. Giba, com sabedoria própria, me contou a seguinte história:
Viver carece de precisão. Assim como navegar. Joshua Slocum, antigo marinheiro. Capitão de embarcações a vapor, depois que se aposentou, adquiriu um veleiro e foi navegar. Na costa brasileira ele naufragou. Ali, segundo ele, descobriu que não sabia nadar. Ele sobreviveu. Morou em Santa Catarina, Navegantes, e durante anos construiu uma nova embarcação com a ajuda dos moradores. Depois partiu novamente. Escreveu um livro. É considerado "desaparecido" após tentar cruzar o cabo Horn. (Esta história foi passada ao Giba de Oliveira por outro marinheiro e grande artista, Tadeu Bittencourt).
Mas o ponto final que eu quero dar a este texto é a ideia de que temos um mundo dentro de nós. Nossas veias e artérias, caso fossem enfileiradas, dariam uma volta ao mundo e o que nos sustenta com ar e energia é um pequeno músculo do tamanho de um pulso. É chamado coração.
Os de galinha, costumamos comer assados em espetos. Quanto aos nossos, ou os mantemos congelados como se estivessem no núcleo de um iceberg ou os deixamos ferver numa canja de emoções.
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