Não se espante, caro leitor: sou um escritor-fantasma, um ghost-writer. Da mesma forma que um jornalista pode ser escalado para fazer a cobertura de evento festivo em rico palácio, e logo na sequência reportar trágico incêndio ou acidente ferroviário, um escritor fantasma escreve por encomenda, sobrevivendo a contar histórias alheias e assinando a obra com o nome de quem realmente viveu ou imaginou os fatos narrados.
Habituado a esta prática, pedi a uma amiga que me sugerisse o tema para esta crônica, pois estava pouco inspirado e ela sempre me oferece ideias brilhantes e luminosas. Instigou-me, então, a escrever sobre “amor e ódio nas artes” e, antes que eu me atreva a discorrer sobre assunto tão extenso e complexo, agradeço a este auxílio luxuoso da amiga, pois verdadeiramente me odeio se me foge a inspiração.
Após alguma pesquisa e reflexões, conclui que uma obra de arte pode transmitir recados pessoais e ilustrar guerras de egos como as que travaram os pintores Pablo Picasso e Henri Matisse. A amizade entre eles, transformada em rivalidade com o passar dos tempos, proporcionou a criação de “Les Demoiselles d’Avignon” e “Arlequim”, pintados por Picasso em 1907 e 1915, respectivamente, em resposta a “Le Bonheur de Vivre” e “Peixe Dourado”, de Matisse.
Essa rivalidade pessoal, impulsionada pela vaidade dos artistas, demonstrou como a arte, geralmente colocada como expressão de amor e pulsão de vida, pode estabelecer uma fricção na relação com a inveja, sentimento elementar do ódio, que é manifestação da pulsão de morte primordial.
Na literatura e no cinema poderíamos citar milhares de obras nas quais a paixão é o elemento central de histórias que evoluem do amor ao ódio. Muitas dessas narrativas acabam por não se resumir na relação entre duas pessoas que um dia se amaram e que, por mistérios que a nossa vã filosofia jamais explicará, tiveram este sentimento invertido e transformado em ódio. Os motivos para essas transformações partem do óbvio ciúme, assim como de disputas e desavenças por heranças, dinheiro e poder. E pode acontecer que o amor entre dois jovens recrudesça alguma rivalidade anterior entre famílias historicamente adversárias por razões políticas ou até mesmo esportivas.
Por ser essencialmente narcísica, toda paixão tende ao posterior ódio, pois o amor a si próprio nem sempre é confirmado no outro, e a arte é uma lente poderosa para captar, reproduzir e ampliar essa natural realidade humana.
Porém, aqui não trataremos dos casos em que a arte espelhou a relação entre amor e ódio através de casos individuais, pois são muito mais emblemáticos os exemplos em que a arte retratou amor, solidariedade e compaixão apresentando, com poesia ou estupefação os horrores das guerras, como no filme “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, no qual o pai judeu Guido e seu filho Giosué são levados a um campo de concentração, e o pai usa um arsenal de artifícios mentais e lúdicos para esconder do filho o ódio nazista; ou no mural “Guernica”, de Picasso, onde as odiosas atrocidades cometidas durante a Guerra Civil Espanhola são pintadas em tamanho gigante. Nestes dois exemplos, histórias de ódio são utilizadas pelos artistas para suscitar, fazer germinar ou elevar o sentimento de amor ao próximo e à humanidade como um todo, que muitas vezes deixamos em latência.
Pânico, aflição e tristeza produzidos pelo ódio ganham outros matizes e cores quando apresentados de maneira artística, poética, pois embora a Arte não possa alterar uma realidade ou simplesmente transformar ódio em amor, é capaz, sem dúvida alguma, de educar nossos olhares e corações para que estejamos atentos ao mundo à nossa volta, de modo que nossas atitudes não permitam que as situações de ódio reproduzidas em narrativas escritas, em quadros, em filmes e em montagens teatrais venham a ser replicadas.
A Arte deve ser um canal de amor, deve fazer soar um sinal de alerta que desperte a nossa humanidade a cada cena de ódio que venha a reproduzir.
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