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Arte & manhas | Sobre a fome e suas diversas formas de perversidade

Por: Luís Bogo
03/08/2024 10:28
Kevin Carter Foto realizada em 1993, a qual o fotógrafo escreveu a legenda "Jogo de espera para crianças sudanesas" Foto realizada em 1993, a qual o fotógrafo escreveu a legenda "Jogo de espera para crianças sudanesas"

A fome e as guerras são as maiores chagas que assolam este imenso corpo chamado humanidade, formado por 8 bilhões de membros, 8 bilhões de vidas.

Muitas vezes a fome é consequência das guerras, pois destrói as lavouras que abastecem pessoas diretamente afetadas pelos conflitos, além de refletir em habitantes de locais afastados dos centros produtores agrícolas e que dependem da importação destes produtos.

No parágrafo anterior cometi um equívoco, ao escrever que “muitas vezes a fome é consequência das guerras”. Na verdade, a fome sempre é resultado de alguma guerra. Para justificar esta afirmação, cito alguns transtornos psicológicos que acabam por resultar em efeitos físicos bem sinistros e danosos, a exemplo da depressão e da anorexia, também chamada de anorexia nervosa.

É comum que a depressão profunda venha a provocar perda de apetite. Isto acontece porque quando estamos tristes ou deprimidos, nosso organismo deixa de produzir os neurotransmissores dopamina e serotonina, responsáveis por nos proporcionar as sensações de prazer. Neste caso, surge uma imediata alteração nos hábitos alimentares, pois o paladar fica alterado e nem mesmo o melhor dos manjares os fará satisfeito. Além disso, pode surgir a dúvida macabra: “– comer para quê? Para continuar levando esta vidinha medíocre, sem graça e sem cor?” – e é aqui que eu volto a falar que a fome sempre é resultado de uma guerra, pois à vista disso, podemos dizer que a depressão é fruto de uma guerra interna, quando a alma está sendo bombardeada por pensamentos negativos, em um conflito interno que aparenta jamais ter solução.

Caso parecido – e ainda mais grave – se dá com a pessoa que possui anorexia, também conhecida como anorexia nervosa, quando o sujeito manifesta o desejo imperioso e irracional de emagrecer, mesmo que não haja necessidade estética ou recomendação clínica para isto. É quando ele para de comer e começa a definhar, por falta de nutrientes no organismo. E sua crença doentia, a busca por uma magreza “ideal”, faz com que seus ossos, especialmente as costelas, se tornem mais aparentes. Em casos extremos, a pessoa anoréxica passa, simplesmente a não sentir mais fome alguma.

Nas duas situações descritas acima, o corpo, necessitando de alimento para funcionar, passa a se “autodevorar”, consumindo as reservas de glicose e, em seguida, a de gordura, até chegar aos músculos. Novamente, recorremos à palavra guerra, pois o anoréxico acaba por estabelecer uma batalha insana: seu equivocado “senso estético” x as necessidades naturais do corpo. E esta consumição, por tormento ou desgosto, pode até mesmo levar à morte.

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Porém, agora vamos falar das guerras propriamente ditas, daquelas em que bombas e mísseis despencam sobre cabeças inocentes ou pés e pernas são esfacelados por minas terrestres.

A foto que ilustra esta crônica foi tirada em 1983, no Sudão (que na época vivia uma guerra civil), pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, que a vendeu para o The New York Times, para depois ser repassada a centenas de jornais ao redor do mundo. Para a legenda da foto, Carter escreveu: “Jogo de espera para crianças sudanesas”.

Apesar de ter sido premiado pelo flagrante, inclusive com o Prêmio Pulitzer de Fotografia Especial, Carter recebeu muitas críticas pelo flagrante, pois muitos disseram que ele mais se preocupou em fazer o clique do que em espantar o abutre, o que não foi verdade, pois após o clique, o pássaro foi espantado e o menino recebeu auxílio, tendo falecido apenas em 2006, vítima de uma febre. Seu nome era Kong Nyong.

Por sua vez, as críticas recebidas transformaram Kevin Carter em uma pessoa deprimida. Cerca de um ano depois de fazer a foto que o tornou reconhecido em todo o mundo, cometeu suicídio trancando-se em seu carro à beira de um rio, em Joanesburgo, na África do Sul, e ligando uma mangueira ao cano de escapamento, colocando-a na fresta da janela do passageiro, intoxicando-se com monóxido de carbono, aos 33 anos de idade.

Na carta em que justifica o suicídio, escreveu: – Eu sinto muito. A dor da vida ultrapassa a alegria ao ponto em que a alegria não existe…. deprimido … estou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres e raiva e dor … de crianças famintas ou feridas, de loucos com dedo no gatilho, muitas vezes policiais, carrascos assassinos.

Assim, o garoto fotografado sobreviveu à fome e à guerra por mais alguns anos, enquanto o fotógrafo foi vítima de uma guerra. De guerra que, como todas as outras guerras em curso ou passadas, sempre provoca fome.


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