Era lá pelos idos de 1600, em Valência, Costa Leste espanhola, onde recentemente se levantou questão a respeito se o cavaleiro da triste figura e seu fiel escudeiro campearam por lá.
Há quem diga, que naquela época, Quixote e Sancho não só trotaram naqueles campos, protegendo donzelas e corrigindo os tortos, como manda o juramento da cavalaria andante, mas também se aventuraram a participar de uma audiência de instrução e julgamento a mando da coroa.
Reza a lenda, que já era fim de tarde, de um verão escaldante, quando chegou um fiscal da coroa atabalhoado com uma carta registrada, com o selo real, dirigida a Quixote.
Não sou chegado ao rei, essa carta tem certeza que não é uma burla ginete?
Disse, Quixote.
Não, pelos céus que não. É um pedido do Rei para conduzires uma audiência e um julgamento aqui em Valência, em que foram presas altas autoridades locais por traição à Coroa.
Retorquiu, o encarregado do Rei.
Na sequência, sem mais questionar, Quixote acompanhou o realesco-servidor-esbaforido até uma praça em que se encontravam os acusados, com as mãos amarradas para trás, mirando o cadafalso ali instalado para a (possível) degola.
As rezas eram intermitentes, como costuma ser sintomático ao vivente em perigo. Antes de fazer as estripulias não consultam os santos, quando vem o repuxo clamam por milagres como se amigos íntimos fossem.
Sem mais delongas, instalou-se Quixote na cadeira lhe reservada para presidir o julgamento, e num misto de mal-ajeitado com pitadas de resoluto passou a ler a carta lhe enviada diretamente do Gabinete da Coroa, assinada pelo próprio Rei de Espanha, que assim dizia:
Valoroso Quixote, ao assistir o meu reino carcomido pela burla, pelo desprezo às nossas leis, e pela bandalheira institucionalizada, peço-lhe meu súdito ímpar, que faças valer a mão firme da Constituição Madrileña e de toda España em Valência, porquanto os nobres daí não fazem nada além de deturpar nossas leis para se locupletarem.
O Governador da Província, distribuí moedas de ouro aos seus amigos, sem observar a rigorosa contabilidade imperial. Instituiu uma verba de-e-que-só-se-paga-em valência para agradar aos seus ao arrepio de nossos decretos centrais.
Não contente, embora conte com bacharéis – muito bem e regiamente pagos – para lhe auxiliar, acabou engambelando o Parlamento local – que também conta com bacharéis muito do bem remunerados – para passar um saco de safadezas com carimbo de lei, que distorcem os mandamentos da constituição do reino, e causam verdadeira farra nos cofres reais prejudicando a todos os súditos.
Veja Quixote, já havia decidido a Justiça do reino que somente quem se utilizasse efetivamente de seus cavalos, poderia trocar a ferradura deles à conta do tesouro da coroa, mas o mentecapto governador de Valência está a pagar cinco mil moedas por mês para seus funcionários que simplesmente registrem o focinho de seus potros na repartição – façam deles uso ou não – e, em contrapartida, mantém a carga tributária da gente produtora da província mais alta que os montes Pirineus.
Mas, a lambança com recursos da coroa não parou por aí, por decreto local o governador de Valência transformou analista de Duque em Duque também, contador-de-história em herói-s-da-própria-milonga, e por aí afora, como se Deus fosse e como se os Decretos e Constituição de Madrid fossem papel higiênico já usados.
Portanto, cavaleiro/cavalheiro, quero que julgues em Praça Pública o Governador de Valência, seus auxiliares bacharéis, e toda sua patota que está a se beneficiar indevidamente dos tributos dos súditos de nossa España. Sejas justo com eles, embora eles não tenham sido justos conosco.
Ao acabar de ler a carta, em voz alta e na praça central de Valência, Quixote respirou fundo, silenciou por eternos dois minutos, período em que refletiu, e então passou a lançar suas palavras, o que fez, nesses termos:
Cavaleiro acostumado que sou às batalhas físicas, não lá muito afeto a julgamentos complexos, bom senso tenho (Pancho nesse momento rasgou uma gargalhada estonteante), e sei que não se julga sem antes ouvir os acusados (terminou Quixote fazendo de conta não ter ouvido as gargalhadas sanchescas).
Passou, assim, a questionar, um por um.
Começou com o bacharel assessor do governador, que questionado porque promovia burlas para aumentar seu saco de moedas, respondeu:
Todos tiram uma lasca onde podem, tenho filhos, mulher e casa de Praia em Barcelona. E, como bom cristão, ajudo ainda a Igreja para cobrir meus pecados, logo que mal tem eu levar a mais alguns vinténs?
De pronto, Quixote redarguiu:
Todo ladrão diz roubar porque todos roubam, todo safado sempre acusa a Justiça por perder tempo com ele, e que há outros piores aos quais as autoridades deveriam deitar seus esforços. Esperava mais de você bacharel-assessor-do-governador.
Na sequência, Quixote ouviu um bacharel assessor dos parlamentares da província, que declinou:
Não posso fazer nada excelência, não tenho autonomia, cumpro ordens, e em época de eleição as ordens são claras, fazer vistas grossas para se agradar o eleitor. Não bastasse isso, sou muito bem pago para fazer o que sou mandado, e ficar quieto não é dos mais difíceis ofícios.
Quixote apenas balançou a cabeça, e já emendou ao fiscal da lei da província, e você Senhor, porque não tomastes medidas para evitar essa bagunça?
Respondeu o fiscal:
Olha excelência cavalheiresca, não sei quanto tempo exerces teu ofício, mais exerço o meu há mais de 30 anos, e já cansei de me iludir com essa história de corrigir o torto e salvar donzelas em perigo. A província aqui se não bens conhece vou te dizer que não passa de um tal de acomodar a filharada e as donzelas preferidas das autoridades do outro lado do rio com pessoal da alfandega, que por sua vez ajeita sua turma com pessoal da venda, e um justifica a trave em seu olho com o cisco do olho do outro, como já previa a Bíblia Sagrada antes de Deus fazer os ventres de nossas mães. Afinal, quero ser chefe também, e em Valência quem reza pela bula papal ou pelos Decretos de Madrid morre seco, sem amigo e sem arrego, pelo que é melhor tocar de lado por arremedo.
O Cavaleiro da Triste Figura demorou-se um pouco, como quem estivesse a raciocinar, mas logo disparou:
O dia que me cansar da cavalaria andante estarei morto ou implorarei que esteja. Não é exclusividade da cavalaria viver e morrer pelas suas obrigações. Soube que quem exerce os ofícios dos mares também entende que navegar é preciso, viver não. Mas, te entendo respeitável senhor, e se não estás disposto morrer e viver pela tua função com total entrega, dê lugar para outro, aposente-se vivente, pois, te garanto, ascensão não traz mais que sorriso amarelo, um punhado de puxa-sacos e outro de despeitados magrelos.
Faltava, ainda, falar com o Governador. Respeitoso, como de costume, Quixote dirigiu a palavra à sua excelência:
O que fizestes de Valência Senhor? O Rei te apoiou para conquistares o cetro. Jurastes conduzir com firmeza e galhardia esse pedaço de terra, e não passado um lustro está pior que pegastes, o que me dizes frouxo miserável?
O governador de Valência aproximou-se, e disse a Quixote, com um inesperado tom e conteúdo de sem-par grandeza:
Vou falar ao pé de seu ouvido, pois, tenho vergonha. No começo me julguei maior que eu era, fui arrogante e prepotente, quase que perco o cetro. Para mantê-lo, cometi excesso contrário, tornei-me benevolente demais, entreguei o que tinha e o que não tinha a essa gente que nunca está contente e quer sempre mais. Diga ao Rei que me arrependo todos os dias de ter me metido em ofício que não tenho habilidade para dominá-lo, e solicite a ele que não cometa mais erro tal de apoiar vivente que não seja capaz de dar cabo a contento às suas funções.
Quixote à essa altura sentiu empatia por aquela gente, não muito diferente das almas que conheceu nessa vida em outros pargos mais simples, sempre com argumentos para justificar seus erros, e mais-que-sempre capazes de lembrar um causo pior daquele que acusado para levantar a máxima que predomina por essa Terra redonda de enganos e quadrada de bestialidades:
Enquanto a Justiça perde tempo comigo que só fiz isso, quem fez isso-mais-aquilo cavalga livre enquanto devia estar sendo perseguido por aqueles que me perseguem.
Mas, logo, recobrou-se Quixote e lembrou do dever lhe ordenado pelo próprio Rei, julgar os responsáveis pelas estripulias em Valência. Recolheu-se aos seus pensamentos, chamou Sancho de canto, e passou a ditar a sentença à qual incumbiu ao escudeiro redigir:
Em nome do Rei de Espanha, réus e povo de Valência, julgo-os por dever, não por capricho. Ouvi a todos atentamente como manda o figurino. Não compactuo e jamais compactuarei com as burlas valencianas. As desculpas dessa gente indecente não são melhores que de salteadores pegos com a boca na botija. A pena capital ou o calabouço não corrigiria as burlas que fazem sem se ruborescer, nem regozijaria às leis do reino tal fim. É próprio da natureza humana/mediana mesmo buscar vantagens e justifica-las como dignas. Enforca-los seria entristecer gente tenra e inocente. Prendê-los seria gastar com vocês o que não merecem, e correr o risco de outros descabeçados replicarem suas bobagens. Creio que se o rei me incumbiu do dever de julgá-los, fê-lo para que eu faça de forma justa. Dito isso, condeno vocês a continuarem sendo quem são, mentirosos, hipócritas, levianos, velhacos e safados se assim o quiserem continuar a ser, pelo que correrão risco de novo julgamento, e quiçá sem cavaleiro sensato como eu a julgar-lhes. De outro bocado, como alternativa, concedo-lhes a possibilidade de a partir de hoje passarem a respeitar na íntegra os decretos de Madri e a Constituição do Reino, e com isso talvez com menos moedas às mãos viverem dignamente em harmonia com as regras que pesam sobre todos os viventes dessa Espanha ardente. Isso é se interessam ainda a vocês a paz. Do contrário, ocorrendo mais uma burla que seja por aqui, levarei ao conhecimento do Rei para enviar julgadores mais firmes que eu na aplicação das penas, pois, mais valente e resoluto na aplicação das leis não há! Quem vai escolher, portanto, ao final seus destinos são as ações que vocês empreenderem. Penso que satisfeito nunca ninguém fica com decisão dos outros, mas desde que os valencianos entendam que do ouro Mouro ou Cristão que é do outro não se faz biscoito (salivou Sancho) e daqui para diante se emendem...e à Lei se rendam, e nesse esgoto não mais se metam...Publique em Praça Pública, soltem-se os miseráveis e frouxos acusados para o destino que os desígnios do altíssimo e seus livres arbítrios apontarem.
Mal acabara de ditar a sentença, reza a lenda, que Quixote deu uma banana ao rocinante, e disse ao Sancho publique essa merda e me encontre adiante... e assim teria o cavaleiro jamais visto, e seu intrépido escudeiro passado por Valência...
Advirta-se, por fim, que qualquer semelhança com a realidade ou outro causo é mera coincidência, pois, se Quixote já é uma lenda, sua passagem por Valência são duas...
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